Ontem quando deitei para dormir, fiquei pensando no senhor. Lembrando sua alegria e forma de comunicação. Um homem astuto que lidava muito bem com as palavras. Palavras que me faziam sorrir, gargalhar, pelo simples fato de não conhecê-las. Eu o julgava ignorante, por pensar que as suas palavras eram erradas ou até mesmo inventadas. Mesmo assim, prestava muito atenção ao que dizia, só pra depois sair repetindo e zombando do seu modo firminês de falar.
Ainda lembro quando eu acordava pela manhã, pedia-lhe benção, ao que o senhor respondia: "Deus te abençoe minha fia". Lembro como o senhor acordava cedinho, mesmo aposentado, lá pelas 6h00 já estava de pé, coando o seu barulhento café.
Eu ouvia cada detalhe, e lembro como se fosse hoje. Primeiro o senhor levantava, lavava o rosto, ia ao quartinho, fazia suas necessidades e higiene matinais. Depois colocava o bule com água para esquentar no fogo. Ouvia atentamente as batidas da colher, colocando açúcar e adoçando a água, e o barulho do sopro esfriando a colherada de café sendo experimentada. Depois aquele cheirinho de café incendiava a casa.
O senhor ia para a calçada e dava "Bom Dia" a todos os compadres e comadres que passavam pela rua. Era nesse momento que eu ouvia o "passou..." bem baixinho. Cheguei a pensar durante toda a minha infância que o senhor estava contando cada um que passava, e na medida em que iam passando o senhor resmungava que aquele compadre já havia passado, numa espécie de conferência. Só pouco tempo atrás que me dei conta de que aquele passou podia representar uma pergunta: “Como passou?”.
Tinha dia que eu me demorava a levantar da cama só pra ouvir o senhor gritar lá do quintal: “Jaquélinooo, levanta!!! Vem passar manteiga no bico das galinha”. Gostava daquilo, mas nunca soube o significado. Também gostava de ouvir as histórias que contava sobre Romãozinho, um menino negrinho malcriado, que muito lembra o saci. O senhor dizia que quando trabalhava “lá fora” topava muito com ele pelas estradas. Apesar de ter medo do Romãozinho, gostava de ouvir as histórias, prometia sempre a mim, que jamais seria malcriada com minha mãe como o Romãozinho fora com a dele. E quando eu pensava em fazer qualquer má criação, o senhor me chamava pra ver a menina que tinha feito má criação com a mãe e me mostrava o espelho.
Quando o senhor ficava bravo, eu ficava só de longe espiando, com medo de sobrar pra mim. Não gostava de ficar “atiquizando” seu juízo. Era assim mesmo que o senhor falava: “Tu vai, me atiquizando, vai me atiquizando, quando eu estourar o juízo, tu vai ver só...”.
As poucas vezes que o vi sério, eram quando alguém o atiquizava, teimando, insistindo em alguma coisa, ou quando o senhor deixava o “texto” cair da panela, o senhor gritava “Pirla” bem alto. Desse xingamento eu ria mais ainda, mas só descobri o significado essa semana. O senhor xingava em italiano. Descobri essa semana que “pirla” quer dizer idiota, estúpido. Dependendo do contexto pode até fazer referência ao órgão sexual masculino.
Devo confessar que o senhor era mesmo hábil com as palavras. Pena que eu não tinha maturidade para aprender mais com o senhor. O que era estranho para mim, era uma verdadeira variação linguística. Se fosse fazer um levantamento do seu vocabulário hoje, daria para fazer um dicionário firminês.
O senhor calçava as “precatas”, ia no “Vadim” fazer a feira e voltava contente com sacolas e o jogo do bicho feito.
O que mais ficou em minha memória, das tantas lembranças, foi o dia em que eu, sentada na calçada de casa, estava estudando sobre a cultura dos povos Incas, Astecas e Maias. O senhor que não sabia ler, aproximou-se e começou a ver as imagens. Eu li todo o texto didático enquanto o senhor ficou de pé, com uma mão no queixo, dizendo: “Hum, Hum, tô cumpriendeno”. No outro dia, o senhor discursou orgulhoso na calçada para alguns compadres: “Jaquéliiino, já tá no terceiro grau. Essa menina pega uns livros do colégio e dá definição em tudo, tudo, tudo...”.
Fico pensando, sabe Vovô, naquela época eu tinha 11 anos e estava na sexta série. Hoje, aos 23, sou uma professora buscando realizar meus sonhos de menina. Lembro com tanto carinho e alegria do senhor, que sinto que não partiste. Que ainda está lá em Montanha, contando seus causos na calçada. Fico imaginando o que diria de mim...
Lembro do meu vovô com muito carinho, e agradeço a Deus pelo tempo que passamos juntos. Tenho memórias que nenhum dinheiro paga. Meu avô era um sábio com as palavras e com as histórias. Uma fonte inesgotável de cultura popular. Difícil aprender o que aprendi com ele nos livros já publicados.
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Vovô Firmino, as rodas de conversa devem ter ficado mais animadas onde ele está agora |
2 comentários:
Não me ocorrem palavras tão sábias quanto as dele, mas o seu texto está fantástico e, acima de tudo, sensível.
Amei o texto.Não acredito que tive um pai tão inteligente assim.Pra mim foi uma grande honra ter esse homem em minha vida.Eternamente me lembrarei do senhor meu pai.
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